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As fotografias de Ângela Berlinde
Tropicália cearese,
por
Titus Riedl
Sociólogo e Pesquisador em Fotografia Vernacular.

Uma terra de sol onde praticamente não chove, uma paisagem entre palmeiras e praias, um idílico de jangadas e animais marinhos - assim costuma-se apresentar aos visitantes, o estado do Ceará no Nordeste brasileiro. Abaixo do equador há este lugar bem fotogênico - um Brasil bem arcaico e brasileiro, um país tropical. Neste mundo tanto real como imaginário aterrissou a portuguesa Ângela Berlinde. Por lá, ela se aventurou, desbravou, descobriu, deixou se seduzir, vivenciou tentações, observou alteridade, se alegrou; foi e voltou, nos últimos anos, num vaivém de numerosas idas e vindas entre seu país europeu de origem e sua antiga colônia. Ângela, nesta sua trajetória luso-brasileira, buscou realizar na América Latina um divertido trabalho de foto-investigação, de poesia visual e de quase “antropofagia fotográfica”. Para tanto, não apenas atravessou mares, mas também mergulhou em tempos passados, movida pela irrisória busca por um paraíso perdido.

A sua fotografia representa um olhar feminino - o de uma apaixonada retratista. Não trata os seus motivos como meros figurinos passivos, mas convida os seus opostos a participarem na concepção de suas imagens como parceiros e atores. É uma olhar cosmopolita que brinca, que não se retém nas convenções fotográficas e não tem medo da caricatura nem do kitsch. Em suas fotos, Ângela não apenas documenta, mas também protagoniza – interfere nas imagens, desenha nelas e as recorta numa bricolagem estética que transcende gêneros, buscando  fazer  do “exótico” algo divertido e instigante. Num piscar de olhos, Ângela assume máscaras e fantasias no melhor estilo de uma “Carmen Miranda”, esta “falsa-brasileira-portuguesa” cujo exagero, cujo estilo espalhafatoso acabou transformando o artificial em algo próprio e original, que conquistou o seu público e finalmente foi acolhida e devotada pelo próprio Brasil.

Ângela colocou os índios do Nordeste do Brasil bem no centro de sua narrativa. Onde mais consequente poderia se buscar as raízes brasileiras senão nos rostos de seus primeiros habitantes?  Nas imagens de Ângela, no entanto, o espectador não encontra os índios mediáticos das florestas tropicais como costumam ser idealizados pela grande imprensa. No trabalho de Ângela Berlinde aparecem outros índios,  litorâneos, “urbanos” em ambiente doméstico cujas casas ostentam televisores e antenas parabólicas; índios que andam de bicicletas, montados em motos e dirigindo carros e falam português, sem saber mais dá língua de seus antepassados. Estes índios nordestinos não tem mais nada de “selvagem”: são pessoas que passaram por séculos em contato com os brancos e assumiram o seu modo de ser iguais a quaisquer outro cidadão brasileiro. Apenas em alguns momentos, de comemoração e festividades ou em representação política mobilizam os símbolos do passado: pintura corporal, colares, cocares e alguns indumentos - nem sempre tradicionais, pois em muitos casos – por falta de referências históricas – recorrem a meras recriações. Usam a sua fantasia, mobilizam a sua criatividade e a memória compartilhada para se reinventar como índios. Nas fotografias de Ângela aparecem em sua maioria em cores; ela os retrata em seu dia-a-dia, sem nenhuma dramaticidade, nem pathos. A busca dos índios do Nordeste por uma identidade contemporânea parece fascinar Ângela. Corresponde à sua própria investigação atrás de suas raízes num mundo cheio de apropriações e (falsas) pistas, mas também de imensa liberdade de criação. Ângela celebra as pontes culturais entre Portugal o Brasil imaginados; os seus tons coloridos dão conta de uma narrativa visual considerada contemporânea e universal. Ela se percebe num mundo novo e jovem, representado, entre outros, pelas muitas crianças e adolescentes retratados – símbolos do futuro desta busca por sentidos e identidades.

Um curioso aspecto de seu trabalho, encontra-se ainda nas fotopinturas que aparecem em uma série de imagens. As fotopinturas sempre relacionam o presente com o passado, os vivos com os mortos, os remanescentes com os antepassados. De certa forma as fotopinturas são as mantenedoras da memória afetiva em tempos de pós-modernidade. Enquanto a família tradicional desaparece, a sua dimensão simbólica parece preservada através da imagem. Nas casas indígenas estas fotopinturas encontram-se iguais como em qualquer outra casa nordestina. São testemunhos curiosos de um processo de aculturação já que repetem um padrão de representação algo rígido e formal da família onde tanto a figura materna como o patriarca tornaram-se bases da estrutura social. Não é por acaso que é através da fotopintura que Ângela Berlinde intervêm criativamente neste seu universo imagético: ela consegue derivar delas algo caloroso, saudosista e divertido, transformando a seriedade em algo alegre. Em tradição da ironia dos modernistas brasileiros, que adaptaram a famosa frase de Shakespeare antropofagicamente, poderia-se acrescentar em relação à obra de Ângela Berlinde: ´Tupi (photo-) painted our Tupi not painted?´... that´s the real question.     


Titus Riedl
Sociólogo e Pesquisador em Fotografia Vernacular.

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